Marcio Mariguela
Psicanálise & FilosofiaArquivo para novembro, 2011
O retorno a Freud de Jacques Lacan: homenagem aos 110 anos de nascimento
Na história da psicanálise e da cultura contemporânea, Jacques Lacan ocupa um lugar de rara singularidade. Formado em psiquiatria realizou sua residência médica na Delegacia de Polícia de Paris – para onde eram encaminhados os psicóticos que passavam ao ato de violências e crimes. Foi lá que encontrou Marguerite Anzieu. Transformada no caso Aimée, Lacan publicou sua tese em psiquiatria em 1932: Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade (Editora Forense Universitária). Com o propósito de render homenagem às comemorações dos 110 anos do nascimento de Lacan, relembro seu encontro com Aimée, a sua amada.
A jovem mulher deixou sua cidade natal, onde era casada e tinha um filho pequeno, para seguir a carreira de escritora em Paris. Na pobre bagagem carregava dois romances escritos nos intervalos de suas atividades como atendente do serviço de correio. A desejosa escritora almejava o sucesso de público. De tanto prezar seus escritos, Marguerite foi procurar um editor que pudesse acolher seu desejo e tornar público assim suas histórias de amor.
Na penúria de sua vida, almejava o reconhecimento de seus talentos e atributos de escritora, mulher de letras. Nas diversas tentativas de se fazer publicável encontrou recusa e humilhação. Abatida em seu projeto apanhou uma faca de caça na pensão onde morava e foi para a porta dos fundos do teatro esperar a famosa atriz Huguette Duflos. Aproximou-se e perguntou se ela era mesmo Duflos. Após ouvir a confirmação, lançou-se sobre ela com a arma em punho e com o olhar injetado de ódio.
Do atentado, a vítima saiu com dois tendões da mão seccionados por tentar se defender. Dominada pelos presentes, Marguerite é conduzida à delegacia policial. Convocada a explicar seu ato, responde que há muitos anos Duflos estava fazendo escândalos contra ela e que pretendia roubar seu filho. Depois de dois meses na prisão foi transferida para a clínica do Hospital Sainte-Anne. O relatório de perícia médico-legal fez constar que a paciente sofria de delírio sistematizado de perseguição à base de interpretações com tendências megalomaníacas e substrato erotomaníaco.
Jacques Lacan ficou siderado e passou ocupar a função de analista para interpretar o drama delirante dessa mulher de letras. Antes de sua transferência para Paris, Aimée havia sido internada na casa de saúde Épinay-sur-Seine, em 1924, a pedido de seu marido René Anzieu, lá permanecendo por seis meses. Lacan citou o laudo de internação que descrevia o quadro sintomatológico: “Fundo de debilidade mental, idéias delirantes de perseguição e de ciúme, ilusões, interpretações, propósitos ambiciosos, alucinações mórbidas, exaltação, incoerência de quando em quando. Ela acreditava que zombavam dela, que era insultada, que lhe reprovavam a conduta: queria fugir para os Estados Unidos”.
A seguir, citou as palavras da própria paciente, extraídas do laudo. Dentre elas, destaco: “Antes de qualquer coisa que querem de mim? Que eu construa para vocês grandes frases, que eu me permita ler com vocês esse cântico: Ouçam do alto do céu, o grito da Pátria, católicos e franceses sempre”. Construtora de grandes frases, Aimée encenava em delírios o drama constitutivo de sua psicose paranóica.
O caso Aimée foi a porta para Jacques Lacan adentrar no território da psicanálise. O artigo “O Problema Econômico do Masoquismo”, publicado por Freud em 1923, serviu de instrumento para Lacan apreender a psicose paranóica de sua Aimeé. Entrando na psicanálise pela psicose, Lacan revolucionou a prática psiquiátrica e abriu a perspectiva de uma clínica da neurose que pudesse reinscrever a lâmina cortante da verdade freudiana: os sintomas de sofrimento psíquico são estruturas de linguagem. Os sintomas são um modo de o sujeito enunciar sua verdade. Os sintomas falam e é preciso ouvir a verdade do que dizem.
Dessa premissa fundamental, extraiu as conseqüências de uma ética da psicanálise que não cessa de interrogar a clínica do sofrimento psíquico. De igual modo, o retorno a Freud foi a estratégia de Lacan para realizar uma ruptura radical com as práticas moralizantes que submeteram a formação do psicanalista a um conjunto de enunciados com propósitos adaptativos e normalizadores.
Elisabeth Roudinesco, com sua propriedade arquivista, publicou Lacan, a despeito de tudo e de todos (Zahar, 2011) para fazer “um balanço, não apenas da herança desse mestre paradoxoal, mas também da maneira pela qual meu trabalho foi comentado dentro e fora da comunidade psicanalítica”. Seu trabalho no caso é a monumental História da Psicanálise na França (em dois volumes publicado pela Zahar na década de 1980) e a intrigante biografia Jacques Lacan, esboço de uma vida , história de um sistema de pensamento (Companhia das Letras).
Trinta anos depois da morte de Lacan, o ensaio de memória de Roudinesco cartografou os principais embates na história da psicanálise contemporanea para concluir: “Cumpre, nos dias de hoje, instaurar uma nova prática do tratamento, uma nova psicanálise, mais aberta e mais à escuta do mal-estar contemporâneo, da miséria, dos novos direitos das minorias e dos progressos da ciência. Retorno a Freud, sim, releitura infiel de Lacan, certamente, mas longe de qualquer ortodoxia ou qualquer nostalgia de um passado morto. Além disso, inspiremo-nos na pertinência da interpretação de Antígona, na qual Lacan fazia de uma reflexão sobre o genocídio a condição de um renascimento da psicanálise. O gesto permanece válido hoje: a psicanálise não saberia ser outra coisa senão uma investida da civilização contra a barbárie” (p.134).
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